segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Deus fala direito

A crônica que segue é um texto reflexivo do meu colega Irmão Ivo Pavan, diretor do Postulado La Salle Beira e chefe da secretaria da Escola João 23. A reflexão dele parte dum acontecimento de um mês atrás aqui na Beira, que quase custou a vida do mais jovem Irmão lassalista moçambicano... Vale a pena conferir!

Deus escreve direito em linhas tortas

Irmão Ivo Pavan

Uma tentativa de interpretar um acontecimento à luz desse provérbio, a partir de um ponto-de-vista. Primeiro, descrever o que aconteceu objetivamente. Em seguida, quais são as ‘linhas tortas’ e por fim o que saiu direito.
1. O acontecimento
O jovem Irmão, que há alguns meses estava recebendo aulas de condução, pediu ao Irmão diretor as chaves do carro para fazer um treino, no sábado à tarde, dia 1 de novembro. Ao dar a chave, foi insistido de que fosse devagar e de que não saísse para longe.
Passados uns trinta minutos, os Irmãos são informados, por telefone, de que houve um acidente e que os ocupantes do carro estavam sendo atendidos no Hospital Central. Felizmente, não houve nenhum ferimento grave no Irmão condutor, nem nos dois professores acompanhantes e nem atropelamentos de terceiros. Apenas que o carro ficou destruído e foi parqueado e de que houve pequenas avarias no caminhão no qual bateu.
Feitos os devidos exames médicos, os acidentados foram liberados. Os dois professores voltaram para suas casas enquanto que o condutor foi conduzido pela polícia à prisão por ter sido apanhado em flagrante delito ao conduzir sem estar habilitado.
Conseqüências: o Irmão passou o fim de semana na cadeia enquanto que os demais coirmãos trataram de todos os trâmites para que ele pudesse ser solto, encaminhar os papéis para liberar o carro e negociar com o dono do caminhão o valor do conserto. Em uma semana, tudo foi concluído. Resultado: um carro a menos na comunidade (vantagem ou desvantagem?), 11.500,00 Meticais em acertos judiciais, 7.250,00 em taxas de trânsito e assistência médica, 73.500,00 no conserto do caminhão. Em torno de 5 mil dólares. (‘Quem vai pagara conta?’ , foi a primeira reação espontânea do Irmão Provincial, ao ser informado do acidente).
2. As linhas tortas
São várias. Umas evidentes. Outras devem ser intuídas num contexto mais amplo.
Antes de citá-las convém definir o que é entendido por “torto”. É tudo o que está em desarmonia com o todo autentica e genuinamente organizado. O mundo é cosmos (organização), não caos. A sociedade, a instituição, o Instituto FSC, a SPC, a comunidade religiosa e educativa, a família... são organismos, constituídos por pessoas livres e comprometidas que criam laços e interagem em busca de determinados fins comuns que garantem a sobrevivência, o desenvolvimento e a identidade da própria entidade ao longo dos tempos. Portanto, é torto, doentio, num organismo, aquilo que diminui sua vitalidade e coloca em risco os seus objetivos.
Vamos citar algumas linhas tortas nas quais Deus escreve direito.
1. Conduzir, sem carta de condução. É crime definido por lei. Não foi o acaso, o destino ou um castigo de Deus que fez com que houvesse o acidente. Foi uma escolha livre, feita pelo condutor, a de conduzir sem estar habilitado e numa via pública movimentada. Sabendo da proibição, poderia evitar sua transgressão. Optou por agir, conscientemente ou sem consciência, contra a lei e as orientações dadas pelo coirmão.
2. Os jovens Irmãos tinham marcado para esse sábado saírem, junto com o seu responsável, para fazer um dia de formação. Dois dias antes do encontro, um dos Irmãos propôs adiar a saída para uma outra data, justificando ter que estudar no final de semana para as provas na Universidade. Assim a saída para o local do encontro não aconteceu. Estando em casa, no sábado à tarde, o Irmão aprendiz optou por sair de carro para treinar. Se os jovens Irmãos tivessem sido fiéis ao que definiram anteriormente, as situações teriam sido outras e este acidente certamente não teria ocorrido. Não foi obra do acaso, do destino ou castigo de Deus a criação dessas circunstâncias, mas foi uma escolha livre adiar o encontro de formação.
3. Há muito tempo estava marcado para este sábado à tarde o encontro de encerramento dos catequistas da paróquia. E o encontro aconteceu. Pena que o Irmão, que também é catequista, optou por sair com o carro para treinar, em vez de participar do encontro dos catequistas. Foi por acaso, por destino ou castigo de Deus esse acidente?
São estas apenas três pequenas escolhas, entre muitas outras, que traçaram as linhas tortas nas quais Deus escreve direito.
As pequenas escolhas do dia a dia traçam as linhas que tecem o pano de fundo onde se inscrevem os acontecimentos. Os acontecimentos não são obras do acaso, do destino ou castigo de Deus. Somos nós mesmos que criamos as condições que geram os acontecimentos. Não prevemos o que vai acontecer no futuro, mas passo a passo, de fidelidade em fidelidade, de compromisso em compromisso, de infidelidade em infidelidade... vamos traçando o nosso caminho e colhendo os seus frutos que podem ser doces ou amargos.
Não gostaria que isso fosse interpretado numa visão apenas moralista ou fundamentalista: “Você não escolheu isto (que é o certo) mas aquilo (que é errado) por isso aconteceu isto – o acidente”. (Deus não mata, mas castiga). Precisamos ir mais longe e buscar a raiz, a origem, o pecado original das pequenas escolhas viciadas.
Não seguir as orientações legais válidas para todos ou estabelecidas pela instituição a seus membros (proibição de conduzir sem carta de habilitação, alterar datas previstas, ausentar-se de atividades agendadas...) apontam para uma postura de independência e auto-suficiência que interferem no funcionamento saudável das instituições as quais pertencemos. Já não há outros referenciais do que os ditados pelos desejos do próprio eu e pelos estímulos imediatos do ambiente. Ou seja: eu decido consultando apenas as necessidades próprias e emergentes no aqui e agora. Compromissos comunitários, leis... são referências que já não pesam e nem orientam minhas escolhas. Exagerando um pouco, pode-se dizer: “Faço e desfaço a meu bel prazer e os outros... bem... que façam o mesmo”.
Este é o pecado original, - a pretensão de ser e agir como deus, de ter tudo à disposição e de não ser limitado por nada e por ninguém, por proibições, por horários comunitários, limites económicos e financeiros, orçamento mensal e compromissos agendados... “Sou adulto e sei o que faço da minha vida”. O caos que daí segue, as ‘torres de Babel’ que se constrói, em sonhos ou projetos, são decorrências dessa pretensão de sermos donos de nós mesmos, livres e independentes, como deuses. E como ficam os objetivos da instituição que nos acolhe, nos sustenta? Se já temos a faca e o queijo na mão, quem nos vai impedir...
Sim, somos chamados a ser como Deus, a participar da vida divina, a ser semelhantes a Deus, e ser filhos de Deus, mas através de um longo processo de fidelidade a alianças, de compromisso e comunhão com Deus, com os outros, com o universo, numa relação de interdependência, de respeito, veneração, admiração, solidariedade... até chegarmos ao ponto de poder dizer como São Paulo: “Já não sou mais eu que vivo, é Cristo que vive em mim”.
Adão quis ser como Deus, mas de forma imediata, num passe de mágica, sem contar com a participação de Deus e com as sábias leis universais, dando ouvidos a insinuações de desconfiança de que Deus, aproveitando-se de sua posição de criador, queria privar o ser humano do gozo das belezas e mistérios e poderes da vida... E Adão caiu. E nós caímos nas armadilhas e promessas do sistema liberal tentador que garante bem estar, comodidade, sucesso, poder, influência... pois não termos consciência da nossa condição ontológica de sermos criaturas livres, isto é, seres em construção, habitados por um sentimento de insuficiência, de carência, de um certo vazio e sede de perfeição. Caímos logo na tentação de querer preencher de imediato esse espaço vazio com os bens e com o poder que o liberalismo tecnológico coloca em nossas mãos, confundido assim a vocação de sermos filhos de Deus com a pretensão de sermos como deus e até de dispensá-lo de nossas vidas (para que ser fiel aos momentos diários de oração?).
3. Deus escreve direto – direito
(Ao digitar ‘direito’ saiu ‘direto’). Foi um lapso, mas caiu bem. Tão bem que já não é preciso detalhar o que Deus escreveu direito nessas linhas tortas, pois já está diretamente escrito na história da salvação. Não é preciso mandar Lázaro de volta para dizer aos irmãos do rico para mudarem de vida, pois os profetas já disseram isso. E se não acreditaram neles vão acreditar no pobre Lázaro? “Eles têm as leis e os profetas. Que os ouçam”. Temos o Evangelho, a Regra, as determinações do Capítulo Geral, o projeto comunitário, os apelos dos coirmãos... Não é por falta de referências que traçamos linhas tortas. A consciência dos próprios condicionamentos que contaminam nossas pequenas escolhas é o início da mudança e o começo da conversão.
O que saiu direito nessas linhas tortas é de que precisamos de uma ‘metanóia’, de uma mudança de atitude, de estilo de vida. Sair de uma pretensão de sermos independentes, auto-suficientes, donos de nossas vidas e projetos, para entrar mais em sintonia e comunhão com quem nos associamos e com a missão que juntos assumimos, com o modo de ser religioso lassalista. E perguntarmo-nos: Quais são os referenciais básicos que levamos em conta ao fazermos as pequenas escolhas do dia-a-dia?
4. Observação final
Faz hoje um mês que o acidente aconteceu.
Ficamos uns dias com apenas um carro e mais de três semanas sem nenhum.
É claro que sentimos a falta, mas vivemos bastante bem. Ficamos mais em casa, estivemos mais juntos... Certamente deixamos de alimentar alguns desejos e de atender alguns projetos pessoais por não ter carro à disposição. Mas os objetivos centrais de nossa missão não foram afetados.
Somos mais livres – já não precisamos tanto disso e daquilo...
“Os anjos são muito mais humildes que os humanos porque são muito mais inteligentes” (Jean Yves Leloup).

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