sexta-feira, 5 de novembro de 2021

 

Manaus insustentável

Padre Sandoval Alves Rocha, SJ – Dia 29 de outubro de 2021

No dia 24 de outubro a cidade de Manaus completou 352 anos de fundação, mostrando na sua história que a vida da sua população sempre foi colocada em segundo plano. No seu próprio nome, a cidade traz a lembrança de um povo indígena, os manaós, que foi exterminado para dar lugar a um modelo civilizatório predatório e opressor, indicando o desprezo pelos nativos que aqui viviam ou ainda vivem, os verdadeiros donos da terra.

Este desprezo pela vida das populações nativas apareceu ao longo de toda a história da cidade, principalmente nos períodos de grande desenvolvimento. Na era da borracha (1890 – 1920), a grande maioria da população não se beneficiou das riquezas que ela mesma produzia. Não teve a chance de experimentar o requinte da Paris dos Trópicos que esbanjava modernidade e brilho. Ao contrário, a maior parcela da população foi expulsa para fora da cidade, sobrevivendo das migalhas do desenvolvimento, que beneficiava pequenas elites locais e o mercado internacional.

A era da Zona Franca de Manaus, a partir da década de 1960, foi um projeto ditatorial, colocado em curso pelo regime da morte. Tal projeto não considerou a melhoria da qualidade de vida do conjunto da população, mas visou primeiramente solidificar um sistema social desigual, baseado na competitividade que exclui a maioria da população ou impõe sobre ela uma urbanização precária e decadente.

Atualmente, sob este regime, 53,38%% dos domicílios da cidade estão localizados em área de habitação subnormal (favelas, palafitas, ocupações e assentamentos). Nestas áreas não há nem saneamento básico, pois o regime do capital já se apropriou destes serviços para dar continuidade ao processo espoliativo. Aqui faltam escolas, transporte, comida, cultura e lazer, mas domina a fome, o desemprego, a privação, a deterioração ambiental e a ausência de serviços urbanos.

O paradigma da desigualdade que comanda a vida em Manaus foi evidenciado de forma trágica nestes tempos de pandemia, quando nos deparamos com a precariedade do sistema de saúde e a omissão dos poderes públicos diante da ação devastadora da covid-19. A crise sanitária mostra de forma inquestionável que a cidade não é projetada para o benefício de todos. Ela é projetada para excluir. Enquanto isso, as riquezas produzidas são drenadas pelos grandes empresários, que buscam incessantemente formas de explorar a população e extrair as riquezas naturais, em detrimento do meio ambiente.

Nesta época vimos que a quase totalidade da população, formada por trabalhadores, indígenas e populações negras, não tem vez nem voz. Essas vidas não interessam aos gestores e elites que conduzem a cidade, a não ser quando são transformadas em objetos de espoliação capitalista. Incontáveis são as vidas perdidas nesta longa história em nome da manutenção da desigualdade sistêmica, que torna Manaus uma cidade insustentável.

Resta-nos comemorar a fundação da cidade sobre os túmulos de milhares de pessoas que foram abatidas pela pobreza, pela violência e desigualdade estruturais, pela falta de gestores comprometidos com o bem comum, mas excessivamente alinhados a um sistema social injusto e ambientalmente predatório.

Padre Sandoval Alves Rocha é doutor em Ciências Sociais pela PUC-Rio, mestre em Ciências Sociais pela Unisinos/RS, bacharel em Teologia e bacharel em Filosofia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (MG). Membro da Companhia de Jesus (Jesuíta), atualmente é professor da Unisinos e colabora no Serviço Amazônico de Ação, Reflexão e Educação Socioambiental (Sares), sediado em Manaus/AM.

Fonte web: https://amazonasatual.com.br/manaus-insustentavel/

 

 

Educação popular para o bem-viver

Padre Sandoval Alves Rocha, SJ – Dia 22 de outubro de 2021

O Serviço Amazônico de Ação, Reflexão e Educação Socioambiental – SARES – promoveu entre 15 e 17 de outubro um seminário sobre Educação Popular, visando contextualizar a pedagogia de Paulo Freire (1921 – 1997) no meio amazônico. Reconhecido mundialmente pela sua contribuição no entendimento da educação como instrumento de libertação e humanização, Freire é o Patrono da Educação Brasileira e inspira a muitos pedagogos, intelectuais e lideranças na busca de uma sociedade justa e solidária.

O seminário trouxe muitos ensinamentos do educador, renovando a esperança dos participantes neste tempo de pandemia em que os principais líderes políticos do Brasil se omitem diante da tragédia causada pela covid-19 e muitos outros ainda agem com irresponsabilidade perante a obrigação de cuidar da saúde do povo brasileiro. Nesse sentido os ensinamentos de Paulo Freire adquirem uma tônica de denúncia e ao mesmo tempo solidariedade.

No território amazônico em que é visível um contexto de pluralismo ético e cultural, o mencionado pensador instiga a atitude de respeito aos diferentes povos e culturas, sugerindo que a Educação deve estar sintonizada com a diversidade de valores, estilos de vida e compreensões da realidade numa permanente troca de experiências e conhecimentos.

O pensamento de Freire valoriza os conhecimentos da região amazônica, impulsionando a criação de redes de sustentabilidade entre os diversos atores locais que buscam manter a integridade do território e promover a dignidade dos povos e do meio ambiente. Nesse sentido é essencial que haja uma mudança na relação entre a sociedade e a natureza, visando uma atitude de cuidado e preservação.

Valorizando os conhecimentos nativos que foram gerados em forte interação com o meio ambiente, as elaborações do Patrono da Educação sugerem a ruptura da mentalidade colonialista que é imposta de cima para baixa e de fora para dentro causando a destruição da região e colocando em perigo a vida local e planetária. A pirataria de conhecimentos e da biodiversidade promovida por grandes empresas transnacionais é outro elemento que não tem espaço na educação popular, pois não traz nenhum beneficio para a população do lugar e a subordina a interesses alheios.

A educação popular promove o engajamento político da população, pois este é o espaço das decisões de grande repercussão e oportuniza o protagonismo da população na construção de uma sociedade justa e sustentável. Trata-se da boa política, que reforça a democracia e o poder popular, visando eliminar ações e atitudes autoritárias, genocidas e intolerantes. Tal modelo de educação resgata a importância das culturas indígenas criando emancipação e evidenciando modelos econômicos alternativos que respeitam o meio ambiente e dialogam com as reais necessidades das comunidades.

Para Freire, o pilar de todo processo educativo é o amor, pois ele abre o ser humano ao diálogo, à solidariedade para com os oprimidos, incentivando ações que promovem a vida, a transformação social, a dignidade e a autonomia dos sujeitos. Este amor se rebela contra a destruição e rechaça a mentira e a manipulação. Esse amor libertador ressalta que o homem é um ser social e ambiental.

Padre Sandoval Alves Rocha é doutor em Ciências Sociais pela PUC-Rio, mestre em Ciências Sociais pela Unisinos/RS, bacharel em Teologia e bacharel em Filosofia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (MG). Membro da Companhia de Jesus (Jesuíta), atualmente é professor da Unisinos e colabora no Serviço Amazônico de Ação, Reflexão e Educação Socioambiental (Sares), sediado em Manaus/AM.

Fonte web: https://amazonasatual.com.br/educacao-popular-para-o-bem-viver/

Pacto Educativo Global

Padre Sandoval Alves Rocha, SJ – dia 05 de novembro de 2021

Já passa de um ano o lançamento do Pacto Educativo Global (15 de outubro de 2021) em que o Papa Francisco convida o mundo católico a se mobilizar em torno de uma educação que favoreça um novo humanismo engajado na formação de sociedades solidárias, proféticas e sustentáveis. Tal Pacto ecoa as preocupações do pontífice que busca responder aos desafios contemporâneos das nossas sociedades.

Esta nova iniciativa apresenta uma proposta educacional diferente das formações e mentalidades orientadas para a intolerância, o racismo, a violência e a devastação ambiental. O Pacto propõe resgatar uma educação que considere a complexidade do ser humano e sua relação com o meio ambiente. Não convêm que o ser humano se reduza à vida econômica e tecnológica, ignorando tantas outras potencialidades, como a alteridade, a espiritualidade, a gratuidade e a solidariedade.

A educação não pode ser reduzida aos aspectos acadêmicos e intelectuais, projetando-se como uma prática desconectada da realidade socioambiental. É necessário que ela forme o ser humano na sua integralidade lançando-o na construção de sociedades democráticas e plurais. É uma educação integral que respeita a complexidade e a diversidade de formas de vida, questionando o modelo econômico e social que provoca doenças físicas e psicológicas, desigualdades sociais e a deterioração planetária.

Na Carta Laudato Si (2015), Francisco adverte sobre a importância de uma mudança de rota, mostrando a necessidade de que a humanidade mude sua forma de habitar o Planeta em virtude dos impactos prejudiciais causados pelo nosso estilo de vida ao meio ambiente e a manutenção das nossas sociedades e da humanidade. Trata-se de criar ou permitir a emergência de estilos de vida mais sintonizados com a natureza e com as necessidades reais dos seres humanos e não humanos.

A Educação propugnada pelo Pacto Global ressalta a responsabilidade de ser humano como cuidador do planeta, competindo a ele desenvolver sociabilidades dialógicas e abertas ao conhecimento e reconhecimento dos outros como sujeitos de direitos e dignidades invioláveis. Estilos de vida capazes de interagirem respeitosamente com a natureza e menos capturados pela tirania do dinheiro e do consumismo desenfreado. Subjetividades dispostas a se mobilizarem pela construção da paz e colocarem em curso iniciativas que promovam o bem comum e a fraternidade universal.

Trata-se de fomentar posturas colaborativas que procuram estabelecer vínculos e redes abrangentes dispostas a encontrar soluções para os principais problemas da humanidade, levando em consideração as necessidades das populações mais vulneráveis e reconhecendo o seu direito de viver decentemente e livres de coações e agressões.

O Pacto Educativo Global constitui mais uma semente lançada do mundo que procura produzir frutos de esperança neste terreno já bastante castigado pela violência, pela indiferença e pela devastação ambiental. É temível que o mundo educativo seja capturado pela economia de mercado para responder a interesses estreitos e reducionistas, mas espera-se dele que desempenhe papel relevante na formação de sociedades capazes de levarem a termo a realização da vida, inclusive da vida humana.

*Sandoval Alves Rocha é doutor em Ciências Sociais pela PUC-Rio, mestre em Ciências Sociais pela Unisinos/RS, bacharel em Teologia e bacharel em Filosofia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (MG). Membro da Companhia de Jesus (Jesuíta), atualmente é professor da Unisinos e colabora no Serviço Amazônico de Ação, Reflexão e Educação Socioambiental (Sares), sediado em Manaus/AM.

Fonte web: https://amazonasatual.com.br/pacto-educativo-global/