segunda-feira, 24 de dezembro de 2007

Editorial do jornal "Brasil de Fato" sobre jejum de dom Cappio

Entre os vários textos e notícias que recebi nesses últimos dias sobre o "jejum e oração" de dom Luiz Flávio Cappio, bispo franciscano da Barra, Bahia, contra o projeto de transposição do rio São Francisco, me chamou atenção e gostei do editorial do jornal "Brasil de Fato" de ontem, sábado.
Embora se posicionando do lado da manifestação do bispo franciscano, expõe de forma até bem didática os dois projetos em causa. Reproduzo abaixo o texto, porque ajuda a situar e entender a questão, sobretudo para quem é leigo no assunto.

Jogo empatado entre dois projetos
Terminou empatado em dois a dois o segundo jogo de um longo campeonato que está em curso, entre o time do capital e o time do povo, na disputa pelo destino dos recursos naturais do nordeste.
Dom Cappio suspendeu a greve de fome, avisando que continuará ainda mais firme na luta. Foi um alívio. O alívio foi geral, de todas as partes. Do lado de cá, todos queríamos salvar dom Cappio, que certamente será muito mais útil ao povo, e a suas causas, vivo e lutando.
Mas foi também um alívio para o governo e a direita, que já não conseguia esconder seu assombro com o fantasma de ter um bispo mártir na sua conta.
O jornal ‘Brasil de Fato’ passou a priorizar a cobertura da greve de fome de dom Cappio, nos últimos vinte dias, porque acreditávamos que essa era uma batalha importantíssima, na disputa entre dois projetos de desenvolvimento para o nordeste. A greve de fome de dom Cappio foi, sobretudo, um brado de alerta das forças populares, que no gesto do bispo, se utilizaram do exemplo pedagógico, para dizermos que éramos contra esse projeto que prioriza o hidronegócio e os interesses do capital. Não havia nem loucura, nem vedetismo, nem interesses partidários e muito menos desconhecimento de causa. Muito menos autoritarismo, como pregaram os neo-governistas, Geddel e Ciro Gomes. Cujo passado não recomenda boa companhia.
Está em curso nesse período de nossa história uma disputa feroz, entre dois projetos de desenvolvimento, da forma de organizar a sociedade e a produção de bens no semi-árido nordestino. De um lado o projeto do capital, que se resume em transformar a água em mercadoria e insumo fundamental para a implementação de uma agricultura monocultora, destinada a produzir frutas tropicais para exportação. Esse modelo que recebeu o apelido de agro-negócio e o hidronegócio.
De outro lado, o projeto popular, que prioriza a convivência dos camponeses e do povo com o semi-árido e defende soluções locais e alternativas para captação e uso da água. E prioriza o destino da água para as necessidades humanas e da criação dos pequenos animais que fazem parte do modo de sobrevivência da região.
No primeiro modelo não há espaço para povo. Para os camponeses. Seu destino é o êxodo rural e ficariam apenas alguns poucos, e ainda como assalariados das grandes empresas.
No segundo modelo, o objetivo é o aumento da renda e a melhoria das condições de vida do povo que já mora por lá.
Esses dois modelos vêm se enfrentando no nordeste desde a ditadura militar. Em certos períodos avança mais o projeto do capital. Outras vezes, fruto da resistência e da mobilização, avança o projeto popular.
E a magnitude do problema econômico e social é tão grande, pois abrange a sete estados e a mais de 16 milhões de camponeses, que se transformou em um problema nacional.
Pois bem, o projeto de transposição do Rio São Francisco está inserido nessa disputa. O Governo, a serviço dos interesses das empreiteiras, das empresas, agroindústrias e do agro-negócio, e retribuindo o apoio eleitoral recebido da oligarquia nordestina, assumiu o compromisso de fazer a obra. Mas não mediu as conseqüências, pois com isso optou por um dos lados.
As igrejas, os movimentos sociais, a via campesina, centenas de entidades articuladas na ASA, e muitos técnicos do governo, que trabalham no Dnocs, Conab, Agência Nacional de Águas, Codevasf, Chesf, ficaram do lado do povo. Sabem que, com muito menos recursos, se poderia desenvolver projetos em cada um dos municípios e eliminar a escassez de água de beber em todos eles. Poderíamos aumentar enormemente as áreas irrigadas, mas em pequenas parcelas. Num resumo dos objetivos dos projetos de cisternas da ASA e os projetos alternativos da Agência Nacional das águas.
O governo pensa que já ganhou. Se equivoca. A luta está apenas no início. E o sertanejo é teimoso por natureza. Acostumou-se com a dureza da vida. Certamente no futuro próximo, serão travadas novas batalhas. E poderá haver uma mobilização cada vez maior dos camponeses nordestinos.
Como os movimentos pediram a Dom Cappio: “Encerre seu jejum, que já foi suficiente para despertar as consciências. E voltaremos com mais gente no futuro”.
Editorial do Jornal Brasil de Fato 22 de dezembro 2007.

Nenhum comentário: